Pegadas de Jesus

Pegadas de Jesus

terça-feira, 26 de novembro de 2013

DOCE LEMBRANÇA


Não me lembro de ter  me alegrado  com a chegada de alguém, tanto quanto a dela. Na verdade, todas as suas chegadas, eram inéditas.

Ressurge à minha mente, de forma bastante nítida, a cena que por tantas vezes eu vi: ela despontando no começo da rua, caminhando lentamente e a passos miúdos.

Trazia na cabeça uma sacola, e uma outra na mão. Até hoje não sei como conseguia manter o equilíbrio, dado que a sacola da cabeça era bem pesada. E não sei qual era o segredo para caber tanta coisa naquelas sacolas.

Esgueirava-se pelas calçadas, sempre procurando o lado da sombra.

Quando meus olhos a avistavam, todo o meu ser virava uma festa. Pulava e corria de contentamento, e muitas vezes passei pela  janela de casa, para ir ao seu encontro. Pegava a bagagem que ela trazia na mão, e seguia à sua frente, eufórica, arrastando, literalmente, a sacola, que parecia enorme, devido a minha pouca idade e constituição física.

Quando ela adentrava as portas da minha casa era como se o próprio Deus, em pessoa, tivesse nos dado a honra de nos visitar.

Corríamos, meu irmão e eu, a mexer nas sacolas, a procura dos presentes: as guloseimas que ela nos trazia. Nada tinha de luxo nos seus presentes. As mais das vezes eram frutas: mangas, jabuticabas, e outras, que ela colhia do seu próprio roçado.

Ficava conosco o fim de semana, e durante todo esse tempo, não saíamos da sua presença, esquecíamos das brincadeiras, porque nada era tão agradável quanto os seus afagos.

Quando chegava a segunda-feira, era terrível, nunca nos acostumamos a isso, ela partia, e levava consigo nossos corações. Chorávamos por um bom tempo, na esperança de assim trazê-la de volta. Mas ela partia, e quando menos esperávamos, voltava, despontando lá na esquina, no começo da rua.

Fui crescendo, tornei-me adolescente, depois jovem,  mas,  por muito tempo essa cena se refez. A emoção era sempre a mesma.

Que saudades da minha avozinha querida! Um dia ela se foi e não voltou nunca mais.

Por Socorro Melo


domingo, 24 de novembro de 2013

PAI, CHEGUEI!


Dia desses, minha irmã, que é da equipe de acolhida, recepcionava as pessoas que iam chegando para a Santa Missa, enquanto entregava o jornal da liturgia.

Aí, chegou um senhor, muito simpático, que respondeu alegremente a sua saudação. No entanto, quando ela estendeu-lhe a mão para entregar o jornalzinho, ele falou assim:

- Precisa não, moça, o jornalzinho não, pois eu não enxergo quase nada, mesmo com óculos. Quando eu chego aqui, apenas me ajoelho, e falo assim: Senhor, Zé chegou!

Achei fantástica esta história. A simplicidade sempre me encanta. Quantas vezes tentamos elevar a Deus preces bem feitas, orações emocionantes, palavras bonitas, que nem sempre saem do coração.

Deus é simples. E para agradar a Deus, basta amar, de verdade. É muito mais profundo dizer, em poucas palavras: Senhor, eis-me aqui! O que significa: Senhor, Zé chegou!

Que tenhamos sempre essa consciência, ao tratarmos com Deus. Diante dele não precisamos dizer nada, bastando ficar quietos, em profundo silêncio interior. Na presença dele contemplemos, adoremos, e deixemos que ele nos envolva com o seu amor.

Senhor, Zé chegou! O Senhor conhece o Zé, desde que o gerou, nas entranhas de sua mãe. Desde que soprou-lhe nas narinas o espírito vivificante... O Senhor sabe o que o Zé pensa, o que carrega no coração, quais são suas alegrias e tristezas, necessidades e intentos.

Zé chegou, e o Senhor o recebe de braços abertos, do alto de sua cruz, porque se Zé está ali, é porque o reconhece como Pai, e todas as semanas, normalmente no mesmo horário, eles têm um encontro marcado.

Pai, cheguei! É isso que quer dizer o Zé, com sua oração simples. E, com certeza, o Pai se alegra, pois, não há nada mais gratificante, compensador e sublime, do que um Pai ver um filho seu adentrar as portas de sua casa.

Por Socorro Melo

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A TEMPESTADE

Minha mãe era minha heroína. Sempre fora. Para mim ela era imbatível. E nem mesmo os meus super-heróis preferidos igualavam-se a ela. E naquela correria, lutando contra os efeitos da tempestade, ela me parecia sobrenatural. Mas, de repente, ocorreu um fato em que tive de rever meus  conceitos a respeito da coragem de minha mãe.

Já não bastando a tempestade, apareceu por lá uma cobra, trazida pelas águas da chuva. Quando minha mãe a viu, desmoronou, mas não fez escândalo algum. Colocou-nos sobre a sua cama e pôs-se a procurar a cobra que, de repente, sumira de sua vista. Ela estava calada, porém, trêmula e assustada. Ficou brava quando um de nós desceu da cama. E pôs-se na busca da cobra, dificultada pelo aguaceiro e pela bagunça em que estava toda a casa, que era coberta de telha de barro.

Encolhidos sobre a cama, tremíamos de medo da cobra e da tempestade. Eu, na minha inocência, fiquei feliz que o animal tivesse desaparecido, achava que tivesse ido embora, e não via sentido em minha mãe procurá-lo. Mas, ela insistia, e armada de um cabo de vassoura, vasculhava cada canto e recanto da casa.

Repentinamente a cobra apareceu na porta do quarto onde estávamos, no momento em que minha mãe a procurava noutro cômodo. Fizemos um escândalo, é óbvio. Ela veio em nosso socorro, quando a cobra já tinha adentrado o quarto, arrastando-se para debaixo de um móvel. Pôs-se a cutucá-la com a ponta do cabo de madeira, e a bater nela sem piedade, quando a cobra, tentando se defender, foi em sua direção. Minha mãe, aterrorizada, mas firme no seu propósito, subiu na cama e continuou a golpeá-la. A cobra se retorcia, sangrava, dava pequenos botes, porém desfalecia pouco a pouco, até que minha mãe esmagou-lhe a cabeça. Se não fosse uma cobra, creio que teria me escandalizado com tamanha violência. Consumado o ato, mamãe permaneceu sentada na cama, com os braços pendentes, sem forças, mal segurando o cabo da vassoura, melhor, a arma do crime. Depois de instantes, respirou aliviada e saiu para beber um copo de água. Voltou refeita. Recolheu os restos mortais da cobra e os jogou fora.

Curiosa como sempre fui, e admirada com a bravura da minha mãe, pois, ela acabara de reassumir, com mais força, o seu papel de heroína no meu pensamento, perguntei: - Por que a senhora continuou a procurá-la? Sabia  que ela estava aqui? E ela respondeu que a cobra é um bicho traiçoeiro e peçonhento, e que se aproveita da nossa ingenuidade e displicência para dar o bote. Que animais assim devem ter a cabeça esmagada, pois, se ferir-lhes apenas o corpo são capazes de se arrastarem e cumprirem seu intento: picar e destilar o veneno. E nesse interim, a tempestade também passou, trazendo-nos a bonança.

Por Socorro Melo (Projeto Cata-Vento).

sábado, 2 de novembro de 2013

O JANGADEIRO


Meus familiares se animaram, vendo a experiência das outras pessoas que atravessaram o rio, com a água na altura do pescoço, e resolveram atravessar também, porém, existia um grande empecilho: eu. Eu devia ter uns oito anos naquela ocasião. Então, de comum acordo, resolveram que a minha travessia seria de jangada. Eu, ainda agarrada na saia da minha mãe, tremendo de medo por mim e por eles, desatei a chorar. Não queria ir na jangada, sozinha, sem a minha mãe. E não concordava que ela enfrentasse aquele rio impiedoso. O jangadeiro, vendo meu dilema, reforçou as palavras de minha mãe: não há o que temer as águas já baixaram... E se elas voltarem? – perguntei. Não voltam mais, elas estão indo para o mar. – E se vierem outras? – Insisti. Faremos nossa passagem bem rápida, falou o jangadeiro, não dá tempo de elas nos alcançarem. Senti tanta firmeza nas palavras daquele homem. Ele me transmitiu tanta segurança, que até aquele instante,  só minha mãe tinha o dom de fazê-lo. Então fui. O jangadeiro, que era um conhecido da família, segurou minha mão, me pôs no colo, e me conduziu até a jangada. Fiz um pequeno escândalo quando ele alcançou o rio, pois, me parecia que ia nos tragar, e nos arrastar, como fizera com as árvores e o lixo, que eu vi descer tão rapidamente. Mamãe aproximou-se e tentou me acalmar.

Dai a instantes, estava eu sentada na jangada, que balançava sem parar. O frio era cortante, e comecei tremer  não sei se de frio, ou  se de medo.  O jangadeiro enrolou-me com uma lona, e disse para eu fechar os olhos, por um momento, que quando os abrisse, já estaríamos do outro lado. Não consegui seguir o seu conselho. Eu precisava ficar de olhos bem abertos para monitorar os passos de minha mãe, que desajeitadamente, com água acima da cintura, se debatia, juntamente com minha avó e tio, e outros passantes, que tentavam fazer a travessia, lutando contra a forte correnteza.
O jangadeiro via minha preocupação, e meu medo, e tentava me acalmar. Conduzia a embarcação com bastante habilidade, mas, vez em quando, uma lufada d’água vinha em nossa direção, por sorte a lona me protegia. Ele ria e fazia anedotas, e se dizia capitão de grande navio. Chamava-me de senhorita e perguntava se estava gostando da viagem, então eu sorri, e relaxei ouvindo as suas histórias mirabolantes.  Era um homem rude, como podia ter tanta habilidade para lidar com crianças, numa situação daquelas?  Não sei, só sei que me deixei absorver por suas histórias, e de repente já me via aportando do outro lado do mundo, segundo ele. E pra minha surpresa, o outro lado do mundo era a nossa margem de destino. Quando me retirou da jangada, olhou pra mim e disse: viu? Chegamos são e salvos. Eu sou ou não sou um bom capitão? Balancei a cabeça afirmativamente, sorri, e fui ao encontro dos outros que se aproximavam.


 (Socorro Melo, Projeto Cata-Vento).